Sunday, November 7, 2010

O SIGNIFICADO DO SILÊNCIO

- Doutor, tenho um problema ininteligível, quero dizer, ininteligível para mim. Claro que para o senhor ele será inteligível.
- Eu suo intensamente sob a pálpebra, não dentro, mas embaixo da pálpebra, na parte externa, o senhor compreende, quando eu digo sob permanece a dúvida, e se eu disser sobre ficaria pior ainda.
            O doutor olhava silente, não que ele olhasse e estivesse sem falar, não, era o olhar dele que não falava, não tinha nenhuma expressão, nem pasmo nem curiosidade. É claro que, além disso, ele não falava, quero dizer, o doutor não falava, além dos olhos, claro. Era um doutor em silêncio com um olhar silente, é isso.
- Eu suo intensamente sob o saco conjuntival, ele, o outro que não o doutor, disse. Havia aprendido esta expressão, saco conjuntival, com um outro, um terceiro, também doutor, oculista, que lhe havia receitado uma pomada para colocar no saco conjuntival. Achou que assim ficaria melhor, ainda que para ele, o outro que não os doutores, ainda restasse uma dúvida. Será que ele entendeu que não é internamente, que é externamente, logo abaixo do saco conjuntival.
Eu acho que o doutor estava pasmo. Pasmo, mas também curioso. “Como é que podia chegar um cara aqui no consultório e me colocar este problema ininteligível, não sei sequer se é um problema, de que ele sua sob o saco conjuntival”. É como eu acho que o doutor estaria pensando. Eu acho, mas era impossível decifrá-lo, a ele, doutor.
“Suo também na nuca, mas só na base da nuca, alí onde começam os cabelos, indo desde o alto de uma das orelhas, baixando e elevando-se até o alto da outra orelha, mas só na linha de base, o senhor compreende? Do alto das orelhas para a frente até a base das costeletas, ali eu não suo”, ele disse, mas antes refletiu, por décimos de segundo porque seria que chamam a isso costeletas, já que costeletas têm a ver com costelas, pequenas costelas, melhor dizendo, assim como costeletas de porco, ou costeletas de cordeiro.
-Eu não suo das orelhas até a costeleta, repetiu.
            O doutor continuava olhando insignificantemente, no sentido de não significar, mirando mas não olhando, ou melhor, olhando mas não vendo, olhando indefinidamente embora não indefinitivamente, porque o infinito é muito longo. Eu, pessoalmente, acho que o doutor estava prestando atenção, ainda que pasmo, simplesmente porque, eu acho, estava curioso. Não há como deixar de estar curioso, mesmo eu, que não sou médico, como disse uma vez a uma amiga que insistia que eu era Ari e médico, mesmo eu estava curioso. Como é possível que uma pessoa sue das orelhas para trás e não sue das orelhas para frente, e sempre na base capitar (é assim que se diz?). Além do mais, suava também na base das pálpebras. Acho que assim ficou melhor, na base das pálpebras, acho que assim não dá para confundir. Portanto, havia três pequenos interregnos, dois entre o alto das orelhas e a base da pálpebra, um do lado direito e outro do lado esquerdo, e um terceiro interregno entre as bases das pálpebras e por sobre o nariz. Como era possível que não se suasse assim. Ou melhor, como era possível que se suasse assim, daquela outra forma.
O doutor não moveu uma pálpebra. Ficaram em silêncio por 15 segundos. É muito, é quase infinitamente longo.
Ele, o outro que não o doutor, levantou-se, sacou o revólver, deu três tiros no doutor. Não foi uma coisa rápida como se possa imaginar. Não, o revólver estava na cintura, atrás, e os gestos foram lentos, ainda que não infinitamente lentos. Ele levantou-se, levou a mão atrás da cintura, tirou o revólver do coldre e atirou. Depois, com o revolver ainda na mão, saiu da sala do médico e deparou-se com a atendente. Silente, quero dizer ela, a atendendente, mas não com o silêncio do pasmo ou da curiosidade, apenas silente com o silêncio do desespero já que ouvira os tiros e imagira o que acontecera ao vê-lo com o revólver fumegante.
Ele olhou para ela e pensou: poderia explicar tudo mas acho que ela não entenderia, ela continuaria silente. Mas, eu perdôo, pensou, e caminhou para a porta do consultório, abriu a porta e saiu para a liberdade.

1 comment:

  1. Este não é um conto, e muito menos infantil. Mas quem sabe tenha algum sentido se eu colocá-lo aqui no blog do Peter Pan de Garanhuns.

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