Tuesday, March 13, 2012

DISTORÇÕES E FALSOS PODERES NAS UNIVERSIDADES

Transcrevo trecho de email que recebi de Gisele Lopes. A estudante se refere à USP, mas os comentários aplicam-se a todas universidades brasileiras e particulamente à UFRJ.
"Embora alguns estudantes se sintam vocacionados ao trabalho científico, as condições de ingresso e permanência na carreira dependem, no dizer de Weber, de um “acaso incontrolável”. Passado quase um século desta sua conferência (A Ciência como vocação, 1919), com a permanência e agravamento desta situação, parece ter chegado (senão já passado) o momento de nomear e discutir o que vêm a ser e como se reproduzem estes “acasos”. A hierarquia de posições e poder que estrutura a carreira acadêmica acumula, em um polo, toda a força e tomada de decisões, e, de outro, toda a dependência e submissão. É quase desnecessário dizer que tal sistema propicia uma série de distorções e arbitrariedades.

A relação entre orientadores/orientandos estabelece uma forma perversa de clientelismo, que sempre me pareceu semelhante a uma sociedade de corte medieval, com suas relações de suserania e vassalagem. Os professores doutores concursados ou titulares, estabelecidos no topo da hierarquia acadêmica e habilitados a lecionar e orientar (frequentemente sinônimo de tutelar, doutrinar e explorar) pesquisas em centros de pós-graduação, tratam a estes institutos como se fossem seus próprios feudos. Mesmo estando em Universidades Públicas, arvoram-se à posição de proprietários da vaga que detêm temporariamente por concessão e para prestação de serviços educacionais. “Esquecendo-se” de sua condição de servidores públicos – e dos princípios da moralidade, transparência e impessoalidade, que deveriam pautá-los – muitos acadêmicos patrimonializam seus cargos de professores/pesquisadores e os utilizam como bem o entendem.


A expressão “autonomia universitária” serve, na estrutura da carreira acadêmica, apenas como eufemismo a encobrir a prática de abusos, irregularidades, injustiças e conchavos de toda a espécie sem que se seja incomodado ou fiscalizado. Entre os pares, reina a prática corporativista de “uma mão lavar à outra”, para tudo continuar sujo. Quando “autonomia” é apenas um instrumento para legitimar desigualdades e abusos de poder, ela precisa ser regulada e fiscalizada – não para ceder espaço a autoritarismos e arbitrariedades provenientes de outras fontes, mas para reger-se pela isenção e transparência. O que pensar de uma carreira cujo ingresso depende, ao fim e ao cabo, da discricionariedade de uma só pessoa, e cujos processos seletivos e suas regras sejam mera fachada de formalidade? O que pensar quando se percebe que as relações afetivo-pessoais (e também as desavenças) são mais relevantes do que a aptidão para a ciência?

Talvez esse texto possa parecer a alguns mera demonstração de ressentimento de alguém que foi lesada e precisa externar sua frustração. Em parte o é, embora não se esgote aí, e, nem que o fosse, se tornaria por esta causa ilegítimo: Tocqueville, no século XIX, maravilhado com as instituições democráticas americanas, citava a liberdade de imprensa e a proliferação de jornais como uma espécie de freio à tirania, já que, de acordo com ele, até os cidadãos mais frágeis e desprotegidos poderiam se valer dela para expor publicamente os desmandos a que eram submetidos. Parece-me que hoje a internet tem o potencial de desempenhar papel semelhante, conseguindo trazer a público informações e denúncias que poderiam ficar circunscritas apenas às partes envolvidas no episódio. No entanto, mais importante do que isso, é sua capacidade manter em pauta discussões e propostas para questões sociais e institucionais pertinentes.

Infelizmente, sei que o que me ocorreu não é um caso isolado, e sim absurdamente frequente, pois a estrutura de poder na academia dá guarida e favorece a ocorrência desse tipo de arbitrariedade. À boca pequena, nas conversas de corredores que quase ninguém ousa levantar nos fóruns abertos, não faltam registros de casos aberrantes que se dão nos bastidores: de assédio moral e sexual, troca de favores para a obtenção de posições e até a classificação de candidatos reprovados de acordo com as regras dos programas, mas aprovados por critérios de simpatia e apadrinhamento, e vice-versa. Além, claro, da “necessidade” de uma subserviência crônica aos caprichos do superior hierárquico, que se explica pela situação de tutela do estudante, dependente de assinaturas, aprovação e indicação de contatos para se viabilizar neste campo. Em se encontrando um professor que se recuse às suas obrigações, que aja de má-fé ou má vontade, sabe o orientando que toda a sua carreira, independentemente de sua qualidade científico-intelectual, poderá estar comprometida. A bajulação e submissão são pré-requisitos essenciais e subentendidos, parte daqueles códigos de conduta não escritos e quase nunca verbalizados. Por isso mesmo, quase nunca questionados: nas universidades, enquanto uma parte de seus membros permanece alheia a tudo o que ocorre, absorta em suas baladas, outra simplesmente adapta-se à esta sociabilidade corrupta. Há ainda a parcela daqueles que, mesmo interessados e aptos à pesquisa, acaba por desistir por não se ver capaz de sobreviver a este ambiente insalubre e opressor.

Conhecendo situações vivenciadas por diversas pessoas em várias instituições de ensino, e refletindo sobre a recorrência destas práticas, vejo que o maior problema não está em um ou outro personagem destas histórias, mas sim na estrutura de poder no interior do campo acadêmico, que as mantém e reproduz. Enquanto as estruturas de poder e tomada de decisões na Universidade não forem mais democráticas, de cima a baixo e de baixo para cima, e enquanto as relações de trabalho acadêmico não se modernizarem e perderem esse caráter nobiliárquico, de clientelismo e favoritismo, todo o sistema seguirá se perpetuando. Teremos, simplesmente, os estudantes de hoje, sucedendo à geração atual e reproduzindo suas práticas e desmandos. Pois o sonho de muitos dos que um dia foram oprimidos é tornarem-se, eles mesmos, os opressores.

Talvez o que mais me impressione seja a contradição entre os nossos estudos como cientistas sociais, na desnaturalização, no desvendamento de mecanismos obscuros das instituições e a nossa incapacidade de refletir criticamente sobre nossa práxis. A desenvoltura com que descrevemos e aplicamos conceitos como “patrimonialismo”, “clientelismo”, “impessoalidade”, “coisa pública”, “nepotismo”, “transparência”, “justiça”, “democracia”, “igualdade” etc e com que analisamos, criticamos, julgamos e propomos medidas para outros campos é incompatível com as práticas vigentes na academia. Provavelmente porque seja mais simples, mais cômodo, apontar a falta de democracia na Universidade apenas nos atos de quem se encontra no topo da hierarquia. Como se a responsabilidade por todas as mazelas da Universidade fossem dos reitores, e no limite, dos governos estaduais ou federal. Como se o que a universidade é, ou vá se tornando ao longo do tempo, não tivesse participação alguma de seus atores mais numerosos e cotidianos: professores e estudantes.

Tudo o que eu posso fazer, neste momento, é propor esta reflexão sobre o campo acadêmico, e, especialmente, sobre seus procedimentos de seleção, para que sejam debatidas em cada curso de Ciências Sociais, em cada órgão colegiado de programas de pós graduação relacionados à área. Algo precisa ser feito, propostas precisam surgir e serem postas em avaliação, pois só assim o atual estado de coisas poderá começar a se alterar."