Wednesday, August 24, 2011





TEXTO I –
FORMULAÇÃO INICIAL NA OBRA DE LOCKE E KANT
ADVERTÊNCIA GERAL QUANTO A CONCEITOS
Os conceitos de  estado de natureza (situação em que se encontraria o homem
antes de organizar-se em sociedade, tendo surgido igualmente a hipótese de que teria
havido um estado social de natureza, segundo Edmund Burke, no livro A Vindication of
Natural Society, 1756) e  contrato social são anteriores a Locke. Embora tenha
antecedentes, em especial os autores que Bobbio chama de monarcomacos, calvinistas
do período das guerras religiosas que afirmavam o direito de resistência contra o
príncipe injusto - na tradição inglesa o iniciador da doutrina moderna é Thomas Hobbes
(1588/1679), autor do Leviatã (1651). Não se trata, contudo, de pensador liberal.
A doutrina de que o poder vem da representação acha-se formulada pela primeira
vez em Locke, razão pela qual se lhe atribui a formulação originária do liberalismo,
embora essa denominação não tivesse aparecido em seu tempo.
O termo liberalismo começou a ser empregado no século XIX. Os conservadores
ingleses eram chamados de  tories  e os liberais de whigs até a época das reformas de
1832. Em seguida a estas, os primeiros adotaram o nome de Conservative Party e, logo
a seguir, os segundos a denominação de Liberal Party.
A QUESTÃO RELIGIOSA E A LUTA POLÍTICA
A questão religiosa na Inglaterra data do chamado cisma de Henrique VIII, que
reinou entre 1509 e 1547. Excomungado pelo Papa, conseguiu que o Parlamento
votasse o Ato de Supremacia (1534), reconhecendo-o como único chefe da Igreja na
Inglaterra, Contudo, somente sob Elisabete I, em 1562, seria organizada a Igreja
Anglicana. Esta adotou o dogma calvinista segundo o qual a escolha para a salvação
resulta da vontade divina e não guarda nenhuma dependência em relação a obras. Mas,
simultaneamente, preservou o culto e a organização  eclesiástica herdados do
catolicismo, com a ressalva de que a nova igreja era uma instituição do Estado, sendo o
monarca seu único e supremo chefe.
Depois da morte de Elisabete I, em 1603, os puritanos, presumivelmente contando
com as simpatias da maioria, preconizavam a purificação da Igreja Anglicana, para 9
eliminar todo resquício de catolicismo, e não consideravam eliminada a ameaça de
reaproximação com Roma e conseqüente subordinação ao Papa. Essa ameaça poderia
concretizar-se através da Casa Real.
O casamento de Carlos I - reinou de 1625 a 1649 - com uma católica, irmã do rei
da França (Luís XIII), não poderia deixar de trazer grandes apreensões.
Nesse último período, do ponto de vista religioso,  os puritanos, isto é, os
protestantes não-anglicanos, formavam a maioria, subdividindo-se em dois grandes
grupos: I) os presbiterianos, identificados com o calvinismo, e que desejavam a
organização de uma Igreja governada por presbíteros ao invés de bispos e arcebispos,
como se dava entre os anglicanos; e II) os independentes, que entendiam que os fiéis
podiam adotar as formas de organização religiosa que lhes parecesse mais adequada
1
.
Por isto mesmo esses últimos subdividiam-se nos mais diversos grupos, entre os
quais destacavam-se metodistas, batistas, “quakers”, etc.
Outro eixo da disputa situava-se na forma de organização do Estado. Na
Inglaterra, a sociedade civil adquiriu grande força, criando-se a tradição de limitar-se o
poder do monarca através de uma assembléia de representantes que se tornaria o
embrião do Parlamento moderno. O pai de Carlos I, Jaime I (reinado de 1603 a 1625),
reacendeu essa polêmica ao proclamar que o poder do monarca é de origem divina,
tendo sua tese sido contestada, entre outros, por Francisco Suarez (1548/1617). A
                                                
1
 No magnífico estudo dos primórdios do protestantismo no Brasil, o reverendo Boanerges Ribeiro
fornece a seguinte explicação: “Referências a diferentes denominações protestantes merecem rápido
esclarecimento: unânimes nos princípios centrais da Reforma (as Escrituras, única regra de fé e prática;
sacerdócio universal dos crentes; salvação gratuita, recebida somente pela fé em Cristo), contudo os
protestantes se sentem livres para organizar-se de  acordo com diferentes sistematizações doutrinárias  e
diferentes formas de governo eclesiástico. No texto mencionamos: os presbiterianos, caracterizados pelo
governo democrático-representativo e pela teologia  calvinista, com ênfase na soberania divina: os
metodistas, de governo monárquico-episcopal e teologia com ênfase na responsabilidade humana; os
episcopais, com governo monárquico-episcopal e relativa liberdade de sistematizações doutrinárias; os
congregacionais, de governo democrático direto (governo pela assembléia de todos os fiéis) e teologia
calvinista e restrição do batismo a adultos (ou, de qualquer forma, a professantes). Os luteranos, de
governo episcopal-sinodal e teologia com ênfase na  graça divina. A típica congregação protestante
(comunidade local) governa-se, sustenta-se e propaga sua fé. Uma capelania oferece serviços pastorais
sem visar à organização eclesiástica dos fiéis para governo, sustento e propagação da fé. (Protestantismo
no Brasil Monárquico. São Paulo, Pioneira, 1973, p. 13-14). 10
doutrina de Jaime I seria formalizada por Robert Filmer (1588/1653) no livro
Patriarcha, que, por sua vez, seria combatido por Locke.
Tal é o pano de fundo da série de conflitos e da guerra civil que abalaram a
Inglaterra das décadas de trinta à de oitenta do século XVII. Resumidamente, ao período
de governo pessoal de Carlos I, entre 1629 e 1640,  que encontra forte oposição,
sobretudo na Escócia, segue-se a convocação do Parlamento, que se propõe liquidar o
absolutismo. Da resistência do rei resulta a guerra civil (1642/1646); a execução de
Carlos I e a extinção da monarquia em 1649. De 1653 a 1658, o país é governado por
uma ditadura exercida por Oliver Cromwell (1599/1658), líder dos puritanos
independentes, que fora designado Lorde Protetor. Após a sua morte, tem lugar a
restauração da monarquia com Carlos II (reinado de 1660 a 1685) e a rearticulação dos
absolutistas. É substituído por Jaime II, seu irmão, abertamente católico. Com a sua
sucessão, ensejava a possibilidade de prolongamento da presença de um rei católico
(Jaime II sobe ao trono com 70 anos), tem lugar a denominada Revolução Gloriosa de
1689, que coloca no poder a filha protestante de Jaime II (Maria II), casada com
Guilherme de Orange. Em 1689, o Parlamento vota a Declaração de Direitos, que se
tornaria, juntamente com a Carta Magna, um dos mais importantes documentos
políticos da Época Moderna, consagradores do denominado Estado de Direito. Firma-se
desde então, a supremacia do Parlamento, estabelecendo-se, em definitivo, a
obrigatoriedade do monarca pertencer à Igreja Anglicana.
INDICAÇÕES BIOGRÁFICAS E RESUMO DO SEGUNDO TRATADO
Tendo concluído o curso de Medicina, Locke torna-se médico de Anthony Ashley
Cooper, Lord Shafstesbury (1621/1683), que foi o grande articulador das hastes liberais,
no atribulado período em que viveu. Logo se tornaria seu assessor e íntimo colaborador.
Nessa condição, participou, em 1669, da elaboração de uma Constituição para Carolina,
colônia inglesa na América do Norte que recebera grande contingente de puritanos
emigrados nas fases de perseguição religiosa civil.
Shafstesbury foi Lord Chanceler nos começos da década de setenta, sob Carlos II.
Destituído em 1675, esteve preso e exilado, voltando a fazer parte do governo em 1678.
Mas logo depois, em 1681, seria compelido a exilar-se na Holanda. Em seguida, Locke
o acompanharia. Com a morte de Shafstesbury, em 1683, assume a coordenação do que
viria a ser a Revolução Gloriosa de 1689. Para semelhante desfecho, muito contribuiu a 11
sistematização que realizou das idéias liberais no  Segundo Tratado sobre o Governo
Civil. O primeiro ocupa-se da crítica à doutrina de Filmer, relativa à origem divina do
poder do monarca. Locke entendia que o papel desse texto esgotara-se com a Revolução
e nunca assumiu sua paternidade. Voltaria à Inglaterra no mesmo navio que trouxe da
Holanda, para assumir o poder, a Guilherme de Orange. Mas não quis exercer nenhuma
função proeminente no governo, preferindo dedicar-se à ordenação do seu pensamento.
Sua obra filosófica fundamental -  Ensaio sobre o entendimento humano aparece em
1690. Subseqüentemente publicou uma  Carta sobre a Tolerância, seguida de outras
três. Ocupou-se também de educação (Alguns pensamentos referentes à educação,
1693).
A tese central da teoria lockeana acha-se formulada no  Segundo Tratado, nestes
termos: “O fim capital e principal em vista do qual os homens se associam nas
repúblicas, e se submetem aos governos, é a conservação de sua propriedade” (§ 124).
No estado de natureza, carecia o homem de certas condições, para lograr semelhante
objetivo, notadamente as seguintes: 1ª) “uma lei estável, fixada, conhecida, que um
consentimento geral aceite e reconheça como critério do bem e do mal e como medida
comum para estatuir sobre todos os deferendos”; 2ª) “um juiz conhecido de todos e
imparcial, que seja competente para estatuir sobre  todos os deferendos segundo a lei
estabelecida”; e, 3ª) “em apoio da decisão, falta sempre a potência para impô-la quando
ela é justa e colocá-la em execução da forma devida”. Em vista disto, o homem renuncia
aos poderes de que dispunha, o de fazer tudo o que julgasse conveniente para assegurar
sua própria conservação, nos limites autorizados pela lei natural, e o de punir infrações
cometidas contra a mesma lei natural, passando a atribuí-los à sociedade, mais
precisamente ao poder legislativo, que é o poder por excelência da sociedade.
Para que a sociedade civil corresponda à expectativa dos que renunciam ao estado
de natureza, deve preencher as condições de que carecia este último. Assim escreve:
“Quem quer que detenha o poder legislativo, ou supremo, de uma sociedade política,
deve governar em virtude de leis estabelecidas e permanentes, promulgadas e
conhecidas do povo, e não em decorrência de decretos improvisados; deve governar por
intermédio de juizes íntegros e imparciais, que resolvam os deferendos em
conformidade com as leis; não deve utilizar a força da comunidade, no interior, senão
para assegurar a aplicação daquelas leis e, no exterior, somente para prevenir ou reparar
ataques do estrangeiro e manter a comunidade ao abrigo das incursões e da invasão.
Tudo isto não deve ter em vista nenhum outro fim além da paz, a segurança e o bem 12
público do povo”. (Two treatises of government. Introdução e notas de Peter Laslett,
Londres, Cambridge University Press/Mentor Book, 1965, p.399; § 131.)
Segundo Locke, essa conclusão impõe-se a partir da  simples evidência de que
“não se poderia atribuir à criatura racional a intenção de mudar de estado para achar-se
em pior situação”.
As premissas mais gerais para semelhante colocação haviam sido estabelecidas no
Primeiro Tratado, que, consoante se indicou, refuta ao  Patriarcha (1680), de Robert
Filmer, devendo ter sido elaborado nesse mesmo ano. Para Filmer, nenhum homem
nasce livre, nem mesmo os príncipes, salvo aquele ou aqueles que, em virtude de direito
divino, são herdeiros legítimos de Adão. A tese se completa pela afirmativa de que todo
governo é monarquia absoluta. Locke se pergunta se seria cabível admitir que Deus haja
dado o mundo a Adão, se semelhante hipótese concorda com o texto bíblico, e por essa
via tratará de fixar o que o homem recebeu de próprio, do Criador, e o que recebeu em
comum com todos os homens.
Em seu estado de natureza, o homem guarda apenas a propriedade de sua própria
pessoa, porquanto a terra e todas as criaturas inferiores foram por Deus doadas aos
homens em comum - eis a conclusão do filósofo depois de examinar detidamente a tese
de Filmer. “A terra e tudo o que ela contém são uma doação feita aos homens para seu
entretenimento e conforto. Todos os frutos que ela  produz naturalmente e todas as
bestas que alimenta pertencem em comum à Humanidade, enquanto produção
espontânea da natureza; ninguém possui privativamente uma parte qualquer, com
exclusão do resto da Humanidade, quando estes bens  apresentam-se em seu estado
natural; entretanto, como se acham destinados ao uso pelo homem, é necessário que
exista algum meio segundo o qual possam ser apropriados, a fim de que indivíduos
determinados, quaisquer que sejam, possam deles servir-se ou tirar proveito” (§ 26).
Esse meio será o trabalho, por meio do qual o homem se apropria de uma parte das
terras comuns e adquire um indiscutível direito de  propriedade. “Quando Deus deu o
mundo em comum a toda a Humanidade, ordenou ao homem que trabalhasse; além
disto, o homem via-se a tanto constrangido pela penúria de sua condição. Deus e a razão
lhe ordenavam que conquistasse a terra, isto é, que a melhorasse no interesse da vida e,
ao fazê-lo, investisse qualquer coisa que lhe pertencesse, o seu trabalho. Quem quer
que, para obedecer a este mandamento divino, se tornasse dono de uma parcela de terra,
cultivando-a e semeando-a, acrescentava-lhe qualquer coisa que era sua propriedade,
que ninguém podia reivindicar ou tomar sem injustiça” (§ 32). 13
Assim, “o homem industrioso e dotado de capacidade racional, a quem o trabalho
devia servir de título”, tornava-se proprietário. A condição da vida humana, que
necessita do trabalho e dos materiais sobre os quais se exerça, introduz forçosamente a
propriedade privada. No que respeita a terra, “a natureza regulou com acerto a medida
do trabalho dos homens e das comodidades da vida. Ninguém, por seu trabalho, podia
apropriar-se de toda a terra. As possessões de cada um encontravam-se limitadas a
proporções bem reduzidas, “nas primeiras idades do mundo”.
A primeira premissa é, pois, a de que o trabalho, que é a única coisa efetivamente
inalienável que Deus deu ao homem ao tempo que o criou com necessidades materiais
cujo atendimento requeria a mobilização dessa potencialidade ou capacidade de
trabalho, agregava-se a elementos exteriores, tornando-os, por assim dizer, um
prolongamento daquela propriedade inalienável (o trabalho). Mais que isto, todos os
produtos que ordinariamente servem à vida retiram seu valor, basicamente, do trabalho.
“Não cabe espantar-se - escreve - como se faria talvez irrefletidamente, pelo fato de que
a propriedade do trabalho seja capaz de sobrepor-se à comunidade da terra porquanto é
o trabalho que dá a toda coisa seu valor próprio; basta considerar a diferença existente
entre uma parcela plantada com fumo ou açúcar e uma parcela da mesma terra deixada
indivisa, que ninguém explora, para adquirir a convicção de que a melhoria devida ao
trabalho constitui a maior parte do valor. Acredito que proporia uma avaliação bem
modesta se dissesse que, entre os produtos da terra que servem à vida do homem, nove
décimos provêm do trabalho. E se queremos avaliar devidamente os bens, da forma
como se nos apresentam quando deles nos servimos, e repartir as despesas que
acarretaram entre a natureza, de um lado, e o trabalho, de outro, veremos que é
necessário referir, na maioria dos casos, noventa e nove por cento às expensas
exclusivas do trabalho” (§ 40).
Nesse ponto da análise, Locke estabelecerá uma segunda premissa de grande
relevância. A atividade produtiva dos homens exerce-se, nas circunstâncias mais
habituais, com vista à obtenção de objetivos perecíveis, de pouca duração. Em relação
aos excedentes do que seria capaz de consumir, restava-lhes a alternativa de destruí-las,
o que seria estúpido e desonesto; doá-los a quem deles carecesse; trocá-las por outros
bens, aptos ainda a serem consumidos, mas dotados de maior capacidade de duração;
ou, finalmente, intercambiá-los como objetivos passíveis de durar infinitamente, mas
inadequados ao consumo, como as pedras de adorno ou certos metais. Nas últimas
hipóteses, parece evidente que quem assim agisse a ninguém lesaria. Por essa forma, a 14
invenção da moeda deu aos homens a possibilidade de conservar os acréscimos de
propriedade resultantes de seu trabalho. “Como o ouro e a prata, que são de pouca
utilidade para a vida humana quando comparados à alimentação, à vestimenta e aos
meios de transporte, tiram seu valor unicamente do consentimento das pessoas, que se
regula em grande parte pelo critério do trabalho, é evidente que os homens aceitariam
que a posse da terra comporta desproporções e desigualdades... pois, com efeito, os
homens elaboraram e adotaram um procedimento que permite a cada um, legitimamente
e sem causar dano, possuir mais do que pode por si  mesmo utilizar: pelo excedente,
recebe ouro e prata, que podem ser entesourados sem a ninguém lesar, desde que tais
metais não se gastam nem se deterioram entre as mãos de quem os possui. Essa
repartição desigual das posses particulares foi tornada possível pelos homens fora dos
laços da sociedade, sem contrato, apenas atribuindo um valor ao ouro e à prata e
convencionando tacitamente utilizar a moeda” (§ 50).
Eis como, na obra do grande pensador inglês, a propriedade e a riqueza tornam-se
altamente dignificantes. Em sua raiz encontra um elemento piedoso, devoto, porquanto
a propriedade decorre imediatamente da observância de um mandamento divino. A par
disto, o ascetismo protestante se entendia então como capaz, por si mesmo, de
engendrar a riqueza. John Wesley, uma das grandes figuras do metodismo subseqüente
a Locke, reconhecia que, “onde quer que se encontrem, os metodistas tornam-se
diligentes e frugais; em conseqüência, crescem os seus bens”. E, embora a riqueza
engendre vários perigos para a religião, entre os quais sobressai o ócio, é de Wesley o
seguinte incitamento: “Não impeçamos as pessoas de  serem diligentes e fugazes.
Exortemos os cristãos a ganhar e poupar o quanto possam, ou melhor, a enriquecer”.
(Apud Max Weber,  A ética protestante e o espírito do capitalismo. Trad. francesa de
Jacques Chavy, 2ª ed., Paris, Plon, 1967, p. 242). Parece evidente, como sugere Weber,
que, embora ao homem daquele período não restasse outra atitude senão entregar-se de
corpo e alma à obra na terra, para dignidade e glória de Deus, sem pretender salvar-se,
por essa via, o sucesso na obra deveria corresponder a um indício de predestinação. E a
propriedade e a riqueza nada mais eram que seu resultante natural.
No liberalismo originário, cuja sistematização foi  obra de Locke, a classe
proprietária é que se fazia representar no poder legislativo, razão pela qual, na
constituição do corpo eleitoral, nesse ciclo, exigia-se a posse de determinados bens de
raiz ou certos níveis de renda. A natureza desse, que é o poder supremo da sociedade,
mereceu de sua parte, na obra indicada, caracterização detalhada e que não vem ao caso 15
resumir, bastando indicar alguns de seus traços essenciais. O legislativo não pode
transferir a quem quer que seja a delegação recebida nem modificar as leis promulgadas
para atender a casos particulares (“é necessário que a mesma regra se aplique ao rico e
ao pobre, ao cortesão favorecido e ao camponês”). Como a tarefa que lhe incumbe não
requer tenha existência permanente, nem seria aconselhável que fosse incumbido de
aplicar as leis por ele mesmo elaboradas, constitui o poder executivo, com existência
permanente, - incumbido de exercer o governo que há de subordinar-se à lei.
Embora não o refira como um poder, a necessidade de magistratura constituída de
juízes íntegros e independentes é enfatizada
2
. Locke admitia ainda que as relações de
determinada sociedade política com as demais, isto é, as relações externas exigiam um
outro poder autônomo, a que denomina de federativo. Finalmente, discute a noção de
prerrogativa, que define como a autorização de que  desfruta o executivo para realizar
certos atos, quando a lei for omissa ou quando couber diversidade de interpretação, no
interesse do bem comum.
POSIÇÃO DE LOCKE NO CONJUNTO DA DOUTRINA
Ao longo do século XIX e das primeiras décadas do século XX - consoante se
examina na Parte III  As reformas eleitorais inglesas - empreende-se o caminho da
democratização da idéia liberal, isto é, o direito  de fazer-se representar foi sendo
estendido a outros grupos sociais, além da elite proprietária rural. Nessa circunstância,
Locke torna-se apenas o iniciador da doutrina liberal, já que não é do seu tempo essa
preocupação de ordem democrática, ou sua obra preserva validade?
Além da condição de fundador da teoria do sistema representativo, Locke tem o
mérito de ter aberto o caminho à formulação da doutrina da representação como sendo
de interesses. Esse aspecto do liberalismo conserva plena atualidade cumprindo tãosomente explicitar que os interesses não são exclusivamente econômicos, sendo em
muitos casos mais relevantes, para os homens, os interesses morais ou religiosos.
A inovação introduzida na questão diz respeito à revisão do entendimento clássico
de que, investido da condição de representante, este passa a representar toda a Nação e
não apenas o grupo social que o elegeu. Esse princípio se formulou a partir do suposto
                                               
2
 A independência do Poder Judiciário foi fixada, na Inglaterra, pelo Act of Settlement (Lei de sucessão ao
trono), de 1701. 16
de que, caso não se estabelecesse, a alternativa seria o  mandato imperativo, quando
nada de muito difícil cumprimento. Essa dicotomia acabou conduzindo a um dos ideais
do liberalismo que a prática social não sancionou, o que levou certos círculos a admitir a
superação ou inadequação do liberalismo quando a questão parece residir no pólo
oposto, isto é, o ideal é que estaria muito distanciado daquilo que a sociedade pode
efetivamente se propor, consoante observa Norberto  Bobbio num dos seus últimos
livros (O futuro da democracia, trad. espanhola, Barcelona, Plana e Janes ed., 1985).
Na verdade, a alternativa para a hipótese de representante de toda a Nação não
consiste no mandato imperativo, mas na atribuição de encetar negociações com os
outros interesses e sancionar o que passará a considerar-se como sendo de interesse
nacional. A periodicidade das eleições (naturalmente num sistema de base territorial
limitada, inexistente no Brasil, onde o sistema proporcional e o quociente eleitoral
fixado para os Estados impedem que se estabeleçam vínculos diretos entre representante
e representados) é que permite avaliar a competência do mandatário como negociador.
LEITURAS RECOMENDADAS
Recomenda-se a leitura do próprio  Segundo Tratado, que é uma obra
perfeitamente acessível. A edição considerada definitiva é da responsabilidade de reter
Laslett (John Locke, Two Treatises of Government, Cambridge University Press, 1960),
editado subseqüentemente como “pocket book” da Mentor, adotado na tradução
brasileira da Editora Martins Fontes.
A tradução francesa mais conhecida é a de Bernard Gilson (Deuxiéme traité de
governement civil, Paris, Vrin, 1967). A mesma edição contém um resumo do Primeiro
Tratado e o texto das Constituições Fundamentais da Carolina.
O pensamento político de Locke foi estudado pelos mais importantes teóricos
contemporâneos da política, como Raymond Aron, Ernest Barker, Leo Strauss, etc.
Contudo, para o interessado em aprofundar o conhecimento da matéria, seria suficiente
a leitura de C. B. Mac-Pherson, The Political Theory of Possessive Indidualism, Oxford
University Press, 1962 (trad. brasileira, Zahar, 1979) e  La politique morale de John
Locke, de Raymond Polin (Paris, PUF, 1960)

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